Em 1998, quando o desenho foi lançado, já víamos que Mulan trazia uma nova perspectiva para as princesas da Disney. Vinte e dois anos depois, pórém, a diretora neozelandesa Niki Caro foi além e criou uma linda homenagem à luta feminista. Convido vocês a assistirem o filme com uma ótica mais atenta a tais elementos. Vamos lá? (Contém spoilers)
"Uma filha traz honra através do casamento"
"Você se esquece de que ela é uma menina, não um menino. Uma filha traz honra através do casamento. Que homem vai querer se casar com uma moça que corre pelo telhado atrás de galinhas?"
A discussão entre os pais de Mulan sobre como deveriam educar a filha é um dos primeiros momentos de conexão. A visão de que o único caminho para uma mulher ser honrada é através do casamento revive as amarras trazidas ao longo da História, que anularam tantas identidades e apagaram desejos da pluralidade feminina. O que leva à segunda fala:
Controle o seu chi
"Seu chi é forte, Mulan. Mas o chi é para guerreiros, não para filhas. Em breve, você será uma jovem mulher e está na hora de esconder o seu dom. De silenciar seu chamado"
Na cultura chinesa, chi é a energia vital, a essência da vida. Uma força interna natural, que é encontrada apenas em guerreiros (leia-se homens). Quando o pai pede que Mulan controle seu chi, ele diz que a está protegendo. De que? De quem?, nos perguntamos. Aqui, conseguimos ver um paralelo com a versão brasileira "bela, recatada e do lar". A imposição da sociedade para diminuir a voz feminina, sob a ameaça de ser classificada como histérica, louca, agressiva, entre tantos outros adjetivos equivocados.
Masculinização para ser aceita
Para usar todo o seu potencial, Mulan deixa de lado sua identidade, seu nome, sua voz (literalmente), e se veste de homem para ir para a guerra. Mais um paralelo com a realidade. Por quantas vezes as mulheres tiveram que se masculinizar para serem levadas a sério em ambientes de trabalho? Seja por valorização, para que fossem vistas como iguais e pudessem fazer parte do time, seja por proteção, para não serem ofendidas com o "agora, a reunião ficou muito melhor".
A luta de gerações passadas: "Assuma seu lugar"
Durante o filme, Mulan encontra Xianniang, uma mulher que também tem o chi muito forte, como ela, e lutou contra isso por muitos anos, sendo excluída do convívio com família e amigos. Xianniang, inclusive, é chamada de "bruxa" pelos homens que a cercam, em clara alusão às mulheres de gerações passadas, que, desde a Idade Média, são condenadas à fogueira por usar seus "encantos" para conseguir o que querem. Afinal, a única explicação para a mulher ser inteligente, corajosa e ter sucesso seria magia, para uma sociedade doente.
Quando as duas se encontram,Xianniang questiona Mulan: "Quem é você?". Ela responde com nome e voz masculina que se deu. Ela pergunta novamente, e Mulan responde da mesma forma. Como já havia reconhecido Mulan como uma mulher, ela, então, se frustra e ensina-lhe uma grande lição, mudando o rumo da história com o simbolismo da abertura da armadura de Mulan, que dá liberdade às amarras em seus seios. A partir de então, Mulan solta os cabelos, tira o uniforme e se reencontra.
Em outro momento, Xianniang, cansada, diz que o tempo dela passou, mas não para Mulan, e que ela deve "assumir seu lugar". Não o lugar que é de Xianniang, mas sim, o lugar que é de Mulan. Uma cena muito bonita, que mostra a passagem de bastão da luta feminista. Um movimento contínuo, que passa por gerações e gerações em busca da equidade de gênero. A "bruxa" simboliza todas as mulheres que lutaram para estarmos onde estamos hoje, e Mulan somos nós, que estamos no comando agora e, no futuro, seremos quem vai passar o avanço para as meninas que virão.
Muitas coisas ainda acontecem no filme, que termina com a frase:
"A menina se tornou soldada. A soldada se tornou líder. E a líder se tornou lenda"
Que a história de Mulan nos inspire a nunca esconder nosso chi e sempre assumir nosso lugar.
Mulan está disponível no Disney+.