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Foto do escritorMariana Kneipp

Helena Bertho: olhar e voz a favor da diversidade e inclusão


Crédito: Stella Ribeiro @fotografastella

Helena é filha de Maria Helena. Mais do que seu nome, seu olhar e sua voz carregam sua hereditariedade. A cada respiração, uma lembrança. A cada pulsação, uma aspiração. Helena é forte e sensível. É valente, mas tem medos. É inspirada e inspira. É mãe, é executiva, é transformadora. É uma mulher negra brasileira, que está escrevendo uma nova história com os capítulos do passado a sua frente.


Helena consegue discursar sobre temas extremamentes sensíveis – às vezes, para ela; muitas vezes, para os outros – com a destreza de quem reflete sabedoria e empatia no olhar. Líder de Diversidade e Inclusão na Coca-Cola, a carioca tem na escuta ativa e na fala firme suas principais habilidades, o que a faz ser um das promotoras da aceleração do combate à discriminação e desigualdade social no país.


"Tanto o machismo, quanto o racismo, são sobre relações de poder. Muitas vezes, elas são muito mais sutis, como uma fala, que te diminui, ou alguma coisa que te desacredita, desempodera, invalida. É um “você tem certeza disso?” ou “passa esse trabalho para alguém rechecar”. Não é necessariamente sobre o que a pessoa fala ou faz, é o olhar, a revalidação, a checagem, a diminuição, a invisibilidade. Às vezes, você participa de um projeto e quando anunciam “o time do projeto”, você não está lá. Aí, você fala “ih, esqueceram”, mas esquecem duas, três, quatro, e você fica assim: “mas é coincidência isso que está acontecendo ou será que tem mais coisa por trás disso?” Isso faz com que a gente ache que tem um problema com a gente. Não existe nenhum problema em ser mulher. Não existe nenhum problema em ser negra. Existe um problema na sociedade, que é hierarquizada pela raça e pelo gênero. O racismo e o machismo colocam em você um problema de inadequação. Você nunca é bom o suficiente. Você precisa, o tempo todo, se validar e provar para você e para o outro. É tão estrutural que você ouve que essa vaga não é para você, que esse espaço não é para você, e, em algum momento, você acredita, porque, às vezes, é o caminho mais fácil, do que você ficar o tempo todo lutando contra todos. Quando você consegue sair desse lugar e perceber que o problema é na estrutura, e não em você, é muito libertador."

Helena notou o peso da sociedade hierarquizada em diversos momentos. Com a morte de seu pai quando ainda era adolescente, ser uma das melhores alunas não era apenas uma escolha. Diferente da perspectiva africana, que valoriza muito mais a sabedoria dos familiares, o paradigma, bastante ocidental, como ela diz, do reconhecimento do conhecimento vem somente do diploma. E, ao chegar na escola técnica, onde estudou, encontrou uma turma de 33 alunos, sendo apenas seis meninas e dois negros. A imagem da sala de aula escancarava o retrato do país.


Pouco tempo depois, participou de um processo seletivo para uma vaga bastante concorrida. Passou pelas etapas de provas, entrevistas, treinamentos. Então, chegou o encontro com o gestor do projeto.


- Ele virou para mim e perguntou ‘Você tem certeza de que quer essa vaga?’. Eu, com 19 anos, empolgada com um emprego em uma empresa grande, disse que sim, claro. Aí, ele apontou para a maleta de ferramentas que fazia parte da rotina de trabalho e falou: ‘Então, vamos fazer o seguinte: vê se você consegue levantar essa maleta aqui. Você vai aguentar carregar? Porque você é mulher, né?’. Na hora, eu só respondi que conseguia, mas depois eu fui entender que isso era machismo.


Não foi a única vez que Helena encontrou expressões e reações de machismo e racismo no ambiente de trabalho. Quando tentou uma vaga de liderança, ouviu “Você não tem cara de gerente”. Seguiu em frente. Em mais um episódio, trabalhava em uma empresa que participava de eventos e precisou contratar recepcionistas para uma feira. Levou três opções de mulheres com bons currículos para a escolha de sua gestora. Uma delas era negra.


- Ela cumpria todos os requisitos, mas a diretora falou para mim: ‘Sabe o que é, Helena? É que essas meninas têm umas questões de higiene. Esse tipo de cabelo, às vezes, elas não lavam, não pentiam’. Naquele momento, me deu um estalo e perguntei: ‘Você está dizendo que eu não lavo o meu cabelo? Porque ela é negra igual a mim’. E ela me parou: “Shiiiii, não fala assim de você. Você é... moreninha’. Eu respondi que não tinha condições de continuar ali, peguei minha bolsa, saí, liguei para a minha mãe e eu só chorava, porque, naquele momento, ficou muito nítido para mim o que era o racismo, o quanto a estrutura tenta te embranquecer para te fazer aceitável. Foi muito violento. Naquele momento, parece que veio um flash. Comecei a conectar os pontos e perceber que está tudo muito errado. É o momento em que você percebe que raça vai sempre te atravessar, e a cor do seu corpo vai chegar antes.


O que tinha potencial para aprisionar, empoderou. Quando foi chamada para a entrevista na Coca-Cola, onde trabalha hoje, Helena chegou a pensar em não ir. Não se sentia capaz: “Você sempre vai para esse lugar de se questionar”. Mas ela foi, e, justamente por o que esse sentimento causou nela, deixou sua marca.


"Na entrevista, me perguntaram qual eu achava que seria meu maior desafio. Eu disse que era provar para mim mesma que eu merecia e deveria estar aqui, e que eu teria que trabalhar três vezes mais. Aí, me perguntaram o porquê. E eu respondi: ‘Eu vou ter que trabalhar o dobro porque eu sou mulher. Eu vou ter que trabalhar o triplo porque eu sou mulher e negra’. Lembro que saí satisfeita porque pensei que, se me contratassem, eu já tinha dito para que vim. Eu precisava me colocar, isso faz parte de mim. Não é só sobre ter alta performance, gostar de trabalhar em grupo, me dedicar muito, ter uma pós-graduação. Eu sou quem eu sou."

E quem Helena é também é a mãe da Olivia, a filha de 6 anos. Sob a perspectiva da maternidade, começou a entender ainda mais a interseção e, principalmente, as diferenças do feminismo pelo olhar da mãe negra e da mãe branca.


"As demandas das mulheres brancas não são as demandas das mulheres negras. São outras preocupações. Uma mãe branca não vai se preocupar se ela tem um menino. Uma mãe negra se preocupa, porque ela sabe que a expectativa de vida é menor. Porque ela sabe que jovens negros tem três vezes mais chances de serem mortos do que jovens brancos. E que não é sobre classe social. Então, quando a gente fala “todas as mulheres”, não são todas, e a gente precisa olhar para isso. Se você me perguntar se eu tenho medos, eu digo que tenho alguns. Não tenho medo de morrer, mas tenho medo de a Olivia se perder. Porque eu sei, por estudo, que as pessoas iriam levar muito mais tempo para prestar socorro a ela. Porque um corpinho preto pode ficar na rua. É naturalizado que ele esteja ali. Se você sair agora na rua e encontrar uma criança branca de 6 anos de idade andando na rua, você vai olhar e procurar pelos pais. Uma criança negra não é vista."

Helena costuma dizer que Olivia não é uma extensão dela. A filha tem sua personalidade e vontade próprias, e deve continuar desenhando seu caminho. Os ensinamentos da mãe passam por “amar ela mesma, se aceitar, reconhecer suas potências, ser generosa, justa e gerenciar suas reações, pensando no sentimento das pessoas também”. Valores que deverão ser exercitados diariamente contra as imposições da sociedade, cujos sintomas a meninas já conheceu em formas bastante duras.


- No ano passado, a gente precisou transferir a Olivia de escola. E, na nova escola, só tinham duas crianças negras. Uma vez, eu estava penteando ela, e ela me pedindo para prender o cabelo o tempo todo, dizendo que estava incomodando. Já percebi o que estava rolando e pensei: ‘não estou acreditando que nada do que já fiz privou minha filha de passar por isso’. Parei e voltei três décadas, quando eu disse algo semelhante para a minha mãe. Perguntei, e ela contou que as crianças estavam brincando, correndo, e todo mundo ficou rindo dela, apontando e dizendo que o cabelo dela era feio e que parecia uma juba de leão. Dei aquela segurada no choro, respirei fundo e falei que o cabelo dela era lindo, que ela era linda, que era igual a mamãe. Aí, ela falou que não era igual a mim, porque meu cabelo era bonito e o dela não era. Ou seja, já afetou a autoimagem dela. Ela não conseguia nem me ver refletida. Fiz todo um trabalho de olhar com ela no espelho para ela se enxergar. Pouco tempo depois, a escola estava ensinando formação do povo brasileiro e a Olivia disse que era descendente de africanos, que era da África. Aí, a assistente falou: ‘Não, você não veio da África, não. Você é bonita’. Fui na escola na hora, e disseram que iriam fazer uma feira de cultura. Eu respondi que não era sobre isso, era sobre atualizar os funcionários. E me responderam: ‘Vamos fazer, conta com a gente. Pode trazer os livros, as referências, todo o material que você tiver...’. Eu fiquei olhando e, em outros tempos, eu diria que, claro, ia fazer tudo, mas, naquele dia, não. Eu respondi: ‘não, esse trabalho é de vocês. Não é o meu papel. Eu não estou aqui para trabalhar para vocês”


Em outro episódio, na sala de espera de um consultório médico, o impacto de ver o sentimento da filha quando apresentada ao racismo puro foi muito forte.


- Levei Olivia no médico, e tinha uma mãe, duas crianças e a babá perto da gente. Mais para o lado, tinha um lugar onde as crianças ficavam brincando, e a Olivia não estava conseguindo brincar. Chamei ela para ficar do meu lado. Nessa hora, o garotinho passou, a babá abraçou ele, e ele respondeu: ‘Não me abraça porque eu não gosto de gente de pele escura igual a sua’. Fui falar com a babá e perguntei se ela queria que eu falasse com a mãe dele, e ela disse que não precisava, porque ‘eles eram assim mesmo, falam o que ouvem’. Uma vez, ela já tinha contado à mãe que a menina disse que ela parecia uma macaca e que a mãe pediu para ela ‘relevar, que era coisa de criança’. Depois de me contar isso, ela levantou, foi beber uma água e chorou. Nesse tempo, a Olivia ficou me perguntando o que o menino tinha dito. Ela tinha ouvido, estava do lado, mas queria que eu validasse. Quando eu respondi, ela falou ‘que horror, que mal educado’ e sentou em uma poltroninha do meu lado. Depois, perguntou: ‘Mamãe, tem gente que não gosta da gente por causa da cor da nossa pele?’. Respondi que sim, e ela quis entender o porquê. Eu disse que tem pessoas que aprenderam errado ou que são más mesmo e expliquei um pouco mais. Sabe, é muito injusto ter que ter esse tipo de conversa com uma criança de cinco anos. Vem de uma hora para a outra, você acha que você está preparada, mas nunca está. Ter que explicar para uma criança que o mundo em que ela vive é hierarquizado. É hierarquizado pelo gênero. Pela raça. Começar a quebrar a inocência de uma criança em uma situação absolutamente violenta, vendo outra criança reproduzindo esse tipo de fala, que já está construindo aquele indivíduo. Às vezes, parece que a gente dá dois passos para frente e dez para atrás. Nessa hora, eu percebo que eu preciso estudar mais, falar mais. Não tem trégua. A trégua é um privilégio. Não falar sobre isso é um privilégio.

Helena diz que o caminho para enfrentarmos e mudarmos a sociedade extremamente opressora em que vivemos é através do fortalecimento coletivo.


"Nossa luta é contra a cultura, não contra pessoas. Então, procure pessoas que possam te ajudar a caminhar. Quando me perguntam o que precisam fazer para serem antiracistas, eu digo para estudar, ler, porque eu não tenho opção. Quanto mais pigmento você tem na sua pele, mais difícil as coisas são. Eu não posso acordar e ver que teve um George Flyoyd, que causou toda a comoção, que tinha que ter causado mesmo, mas ver uma mulher no interior de São Paulo com uma botina no pescoço e a gente naturalizar isso. Chegar no meu local de trabalho e pensar ‘cadê minhas primas, meus vizinhos?’. Alguém tem que falar. Eu não sei se vou mudar o mundo, mas, o meu mundo, eu tenho que mudar."
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