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Foto do escritorMariana Kneipp

Mães de filhos negros: dores e dissabores em suas pautas de lutas

Texto escrito por Viviane Rodrigues (@vividenzel), Pedagoga, Mestre em Relações Étnico-Raciais e Professora da Rede Pública Municipal do RJ, a pedido do Projeto Reflexo.

Refletindo sobre o universo de pautas paralelas entre as Mulheres Negras e Não-Negras, a maternidade de filhos negros tende a ser uma outra via dolorosa e conflituosa para esse grupo. Desde a gestação das mulheres negras, já estamos expostas aos dissabores e, principalmente, às dores do “Racismo na Saúde”, muito bem exemplificado em matéria da Carta Capital, que diz que, “nas maternidades do Brasil, a dor tem cor”.


Buscando analisar a fase após a gestação, construo minhas reflexões como pesquisadora de relações raciais, mas, principalmente, a partir de minhas experiências como mãe de Filho Preto, exposta a uma série de vivências que embasam minhas elucubrações.


Refletindo sobre essa temática, não posso deixar de considerar o lugar das Mães Não-Negras que se tornam mães de filhos negros, mas me inclino a imaginar que para essas mulheres, poderá haver um certo “delay” para que certas preocupações venham à tona. Pois, em muitos casos, só a empatia com a pauta alheia não é o suficiente para compreensão da complexidade do drama racial ao qual nós, mulheres negras, somos expostas, e por essa razão, muitas precisam da “navalha na carne” para o despertar de certas problematizações.


Esse grupo de mulheres tendem a ser deslocadas de um movimento de elogios enquanto seus filhos são pequenos: “Que gracinha! Tão lindinho!”, para uma posterior exposição a violências quando, à medida que crescem, seus corpos passam a ser observados e abordados socialmente como um elemento suspeito. “Negão, desça do ônibus para ser revistado!” faz parte das abordagens que precisamos prepará-los para ouvir, junto a um manual de comportamentos que precisam ter, com fins de resguardarem sua integridade física.


Nós, mulheres negras, experimentamos o racismo que incide em nossos corpos desde sempre, passado por nossas gerações. Tenho recordações de uma das narrativas contadas pela minha mãe sobre uma perseguição que sofreu por seguranças das Lojas Americanas. O que poderia parecer uma neurose foi confirmada quando, despistando o primeiro segurança, já em outro departamento no interior da loja, através do rádio de um outro profissional, foi feito o relato da descrição completa de suas vestimentas, com vistas à continuidade da observação ao corpo preto suspeito.


Considero relevante pontuar nessa narrativa que minha mãe, funcionária pública federal, acabava de sair do seu turno de trabalho e entrava em uma loja de shopping. E que essa mesma mulher negra, no seu papel de mãe, jamais permitiu que seus filhos saíssem de casa usando chinelos (eu só compreendi suas razões muito mais tarde). Trago esse detalhe para dizer que não estava mal vestida, principalmente para não dar margem para aqueles imaginários descrentes da questão racial, a pensar que a ocorrência foi por uma questão de classe.


Lembro ainda hoje, há uns 15 anos atrás, quando em pleno sábado de manhã, estudante de pós-graduação, entrei no elevador do prédio da Faculdade Cândido Mendes, no bairro de Ipanema, e fui “confundida” com uma auxiliar de serviços gerais que deveria estar subindo atrasada para iniciar seu expediente: “Está atrasada, sua encarregada já está aí. Vai te chamar atenção!!!”, disse o ascensorista para moça que teve que mostrar a carteirinha de estudante.


Essas experiências comuns na vida da população negra fazem com que nós, mulheres, desde o nascimento de nossos filhos, convivamos em constante tensão com a sociedade racista.

Certa vez, em uma viagem de férias em família para o Recife, fomos a um evento noturno, em uma pracinha na Praia de Boa Viagem, próxima à rede hoteleira que estávamos. Após duas voltas entre as barraquinhas, o pré-adolescente ainda não tinha decidido o que gostaria de lanchar. Nos acomodamos em um ponto e ele foi orientado a fazer novo percurso pelas barracas de lanche para escolher e perguntar o preço do que desejava, afinal, já era um rapazinho. Enquanto isso, ficamos observando seus deslocamentos. Ao parar em uma determinada barraca, vimos que um homem se aproximou e lhe falou alguma coisa. Ele respondeu e voltou ao nosso encontro. Antes que eu indagasse, ele, bastante surpreso, mas sem maldade, disse-nos que o homem lhe ofertara o sanduiche já mordido, que estava comendo.


Observem, não houve destrato, pois aquele homem até estaria sendo generoso, caso aquele menino estivesse com fome mendigando por comida.


Essas e outras histórias deram margem para uma crise de ansiedade que tive no dia em que deixei meu filho, atendendo à seu pedido, ficar mais um pouco fazendo uma “degustação” de um novo game ofertado no interior de uma livraria do shopping, enquanto eu ia a uma loja de roupas praticamente em frente. Só de pensar que ele poderia ficar exposto a algum tipo de experiência pautada apenas pela cor de sua pele me fez desistir da compra e sair da loja em 5 minutos para acompanhá-lo.


A experiência de ser mãe de filho negro nesse país é atravessada pelo alto índice de mortalidade reservado aos corpos negros. Segundo números divulgados pelo IBGE, o homicídio entre jovens pretos e pardos são quase três vezes maiores do que de brancos, além da violência voltada a essa população ser mais letal, segundo a Folha de São Paulo.


No grupo de pessoas pretas e pardas total, sem diferenciar idade ou sexo, a taxa de homicídios aumentou de 37,2 para 43,4 entre 100 mil habitantes, de 2012 a 2017. O crescimento não foi proporcionalmente igual aos dos brancos, grupo no qual permaneceu estável: de 15,3 para 16.

Quase que diariamente, somos expostas a noticiários com trágicas histórias como as de João Pedro (14 anos), Kauã Rozário (11 anos), Kauam Peixoto (12 anos), Kauê dos Santos(12 anos), Caio de Jesus (24 anos), que têm suas vidas ceifadas por balas “perdidas”, que insistem em encontrar os corpos pretos, além da conduta policial que se mostra ainda mais violenta quando a abordagem é voltada para um cidadão negro. A própria linguagem midiática se processa de maneira distinta, segundo a Revista Fórum: “Quando é branco, olho claro, cabelo liso, loiro etc. é jovem de classe média. Quando é negro, pardo, cabelo crespo, pobre etc. é traficante.”


Embora meu filho nunca tenha pertencido a classe média, ele é um menino que estudou toda sua vida em colégios particulares, e foi nesse lugar onde conheceu as primeiras experiências de discriminação racial no parquinho da pré-escola com seus pares de 04/05 anos. Foi a partir dessa dor que me tornei militante das causas raciais.


Além de toda sorte de preocupações relacionadas a educação e aprendizagem, como qualquer outra mãe, no meu lugar de Mãe Antirracista já fui a escola questionar a professora sobre o lápis rosa que ela apresentou para turma como sendo o “cor de pele”. Já fui cobrar da escola um posicionamento a respeito do racismo recreativo presente na hora do recreio entre crianças, já reclamei da ausência de oferta de livros paradidáticos no acervo da escola que tivessem personagens negros, além da presença de temáticas sobre a história da África e da cultura afro-brasileira atendendo a lei 10.639/03.


É muito doloroso, tão precocemente, ter que informar para nossos filhos que a cor da nossa pele é um problema para a sociedade em que vivemos, mas particularmente achei importante ensiná-lo desde muito cedo a identificar quando uma “brincadeira” pudesse ter cunho racial, para que jamais silenciasse qualquer desqualificação relacionada as suas características fenotípicas, como aconteceu nas minhas experiências da infância.

Mas agora ele cresceu... É um adolescente que deseja conquistar sua autonomia, sair sozinho, andar de chinelos, usar boné, casaco fechado em dias de sol... Quer explorar o mundo sem os olhares super protetores da família e ter suas próprias opiniões sobre a vida.


O problema agora é outro. Como fazê-lo entender que, em uma situação de abordagem policial covarde, mesmo estando correto, o movimento agora deve ser diferente? Que deverá silenciar e não reagir, contrariando tudo que aprendeu até aqui. Como fazê-lo aceitar que, nesses casos, é melhor ser publicamente humilhado do que ser uma vítima da situação?


Das questões que atormentam minha mente, me questiono... para que pedir que ele use tênis e não chinelos, que tire o boné e abra o casaco ao sair de casa, se é o seu corpo preto que lhe torna alvo permanente da suspeita social?


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